Bolívia: Os erros de Evo e um novo instrumento político de esquerda

19/04/07

Evo Morales e seu partido (Movimento ao Socialismo – MAS) ganharam a eleição presidencial de 2005 após um intenso processo de mobilização popular que derrubou dois governos neoliberais. Como consequencia da pressão popular que o elegeu ele assinou, no dia 1º de maio de 2006, o Decreto de Nacionalização dos Hidrocarbonetos, aumentando o controle governamental sobre as empresas multinacionais que exploram o gás boliviano.

 
Porém, quinze meses após sua eleição, fica mais claro os limites do governo MAS/Evo no cumprimento das promessas revolucionárias pelas quais foi eleito. Promessas baseadas no que ficou conhecido como "a agenda de outubro", um programa dos movimentos sociais bolivianos levantado durante a rebelião de outubro de 2003; que consistia, basicamente, na nacionalização total dos hidrocarbonetos e convocação de uma constituinte soberana para refundar a Bolívia.

Para um observador desatento, ou que acompanha de forma superficial o processo revolucionário na Bolívia, o governo de Evo Morales parece estar cumprindo suas promessas, "nacionalizando" a indústria de hidrocarbonetos e convocando uma assembléia constituinte soberana e refundadora. Essa visão ingênua também é compartilhada por observadores bem atentos e informados, que juram de pés juntos que o governo boliviano está cumprindo, ao pé da letra, tudo o que prometeu ao povo.
 
Infelizmente (pelo menos pros revolucionários de esquerda) é tudo uma grande mentira. E o pior efeito dessa mentira é a manutenção do grosso da população num estado de ignorância plena sobre a real situação do processo revolucionário boliviano. Não se pode negar a realidade. Se tudo está tão bem, tão "revolucionário", por que setores significativos do movimento social boliviano como as Juntas Vecinales de El Alto ou a Central Obrera Boliviana (COB), exigem uma "nacionalização verdadeira dos hidrocarbonetos", causando, inclusive, grandes mobilizações como a que ocorreu em fevereiro deste ano na região de Camiri, com a ocupação da planta da Shell pelo Comitê Cívico local [1]?
 
Por que Andrés Solis Rada  (ministro de hidrocarbonetos que aplicou o decreto de nacionalização) renunciou em setembro de 2006 após ter sido desautorizado pelo vice-presidente Alvaro Garcia Lineira que, pressionado pelo governo brasileiro, congelou a resolução baixada por Solis Rada que confiscava as receitas com refino e distribuição de derivados de petróleo das companias estrangeiras? Detalhe: a resolução apenas aplicava de fato a nacionalização tornando empresas como a Petrobrás meras prestadoras de serviços do governo boliviano.

A manutenção dessas mentiras serve a diversos interesses: serve ao governo boliviano para alegar que está cumprindo a agenda de outubro; serve à direita reacionária, tanto da Bolívia quando do Brasil, pra legitimar o discurso de que estamos frente a um governo radical que ameaça a democracia burguesa e o capitalismo na região; e serve, principalmente, às multinacionais que atuam na Bolívia, prosseguindo com seus lucros fabulosos; como se muita coisa tivesse mudado e elas se encontrassem a serviço do povo boliviano.

Em seus artigos "la nacionalizacion arrodillada" e "los errores de Evo", Solis Rada desmonstra claramente as contradições do governo Morales, com a propriedade de ter sido uma peça chave no processo de nacionalização e ainda ter considerável influência sobre setores do governo.

No artigo "la nacionalizacion arrodillada", Solis Rada revela como o desconhecido "anexo F" dos contratos "impostos" às multinacionais alterou o caráter de "contratos de operação" para o de "contratos de produção compartilhada". Pelos contratos de operação originalmente propostos as petroleiras executariam por seus próprios meios, e por sua própria conta e risco, em nome da YPFB (estatal petrolifera boliviana), os trabalhos de exploração em troca de um pagamento. Já com os contratos de produção compartilhada  as multinacionais recuperam o direito de registrar o valor de suas participações no negócio petroleiro, incluindo as reservas de gás associadas ao mercado de exportação, sobre as quais têm direito proprietário, o que as faz contar primeiro nos seus balanços e depois nas bolsas de valores internacionais. Segundo Solis Rada o "anexo F" transforma o decreto de nacionalização em uma casca vazia, de maneira que o governo boliviano limitou-se a afirmar que conseguiu maiores recursos através da venda de quantidades maiores de gás e petróleo pro Brasil e pra Argentina.

Agora, a Bolívia continua com grandes dificuldades em obrigar as multinacionais a abastecerem o mercado interno com preços inferiores aos internacionais, e continuará exportando matéria-prima pro Brasil e pra Argentina enquanto o interior da Bolívia carece de recursos energéticos. Além disso, os recursos adicionais que conseguirá com essa meia-nacionalização não serão suficientes para transformar a economia boliviana.    

Com tanta pressão internacional vinda das potências imperiais e dos organismos financeiros internacionais poderia a Bolívia ter agido de outra forma e seguido outro caminho? Podia-se optar por um rumo de dignidade plena e de soberania nacional baseados no decreto de nacionalização somente com o respaldo do governo cubano e venezuelano? Para Solis Rada a resposta provavelmente seria negativa, pois a conjuntura internacional [2] dá a Evo poucas opções de fazer algo muito diferente do que fez com os contratos petroleiros. Mas Evo perdeu a chance de tomar a atitude mais revolucionária possível: simplesmente dizer a verdade ao país, ao invés de oferecer um espetáculo alienante que coloca parlamentares do MAS, parlamentares declaradamente liberais, e transnacionais petroleiras lado a lado convocando o povo a respaldar contratos petroleiros assinados sob o sinistro "anexo F". O certo seria expor ao mundo o xeque-mate a que a Bolívia foi submetida denunciando as formas de dominação imperial, ao invés de convencer a população de uma vitória que não existe, pelo menos não da forma como é propagandeada.

No artigo "los errores de Evo", Solis Rada denuncia que outra contradição é um regime que se diz anti-imperialista continuar enviando tropas ao Congo e ao Haiti, através dos programas militares das Nações Unidas que nada mais são que prolongamentos da geopolítica norte-americana. Também é intolerável que esse mesmo governo, eleito sob uma perspectiva revolucionária, não tenha aprovado o Projeto de Lei de Investigação de Fortunas emperrado desde 1990. O velho problema da corrupção pública também continua generalizado, sendo tolerado nas esferas oficiais. Além disso, o governo boliviano paralizou os processos jurídicos por delitos de contrabando, evasão impositiva e calote cometidos pelas multinacionais petroleiras, uma concessão que não se justifica mesmo na conjuntura internacional desfavorável.

Completando esse quadro temos a tal Assembléia Constituinte que iria refundar o país. Bom, estamos a poucos meses do esgotamento do prazo dos trabalhos constituintes e praticamente não houve avanços, com o governo sem reação diante das táticas de boicote que a oposição adotou durante esse período. Ainda na questão da constituinte alguns deputados do MAS, numa clara mostra de falta de visão estratégica, não estão conseguindo tocar a questão das autonomias indígenas sem dar munição para a direita separatista do oriente boliviano, que aliados com venezuelanos direitistas do estado de Zulia e equatorianos separatistas fundaram a “Confederación Internacional por la Libertad y Autonomía Regional da América Latina" financiada por Petroleiras com interesses nos campos de gás e petróleo da Venezuela, Bolívia e Equador.

Em meio a toda essa dispersão a Central Obrera Boliviana (COB), através de seu Comitê Executivo, anunciou que vai criar um Instrumento Político dos Trabalhadores, ação esta decidida no congresso da central sindical. A COB "considera que o atual governo encabeçado pelo Movimento ao Socialismo (MAS) não concretizará mudanças profundas que permitam a derrota definitiva dos neoliberais e da oligarquia que estão se rearticulando graças a timidez do MAS". Para a COB os erros do atual governo são aproveitados pelos partidos neoliberais, o que não pode ser permitido pelos trabalhadores sob o risco da luta voltar a estaca zero. Mário Bustamante, do Comitê Executivo da COB, anunciou que haverá uma reunião nacional com outras organizações em 29 e 30 de abril; que lançará um manifesto para o 1º de maio anunciando a formação do novo instrumento político que represente de forma direta o povo trabalhador e suas organizações sociais, e intervindo com suas propostas na política nacional.

Tudo indica que o 1º de maio de 2007 terá uma novidade tão impactante quando o Decreto de Nacionalização do ano passado, mas que não ganhará tanto destaque na mídia. O advento de um novo instrumento político de esquerda pra ser opção ao MAS traz novos elementos na revolução boliviana. Será mais um fracionamento da esquerda que poderá ser usado pela direita? Esse novo instrumento político repetirá os erros do MAS? Será um mero partido eleitoral ou algo realmente novo como a Outra Campanha está tentando criar no México? Bom, por enquanto só tenho uma certeza que compartilho com o ex-ministro Andrés Solis Rada: que o governo de Evo Morales avançaria mais se seus altos dirigentes mentissem menos.

 

André Takahashi – taka@riseup.net

 

notas:

[1] Comitê Cívico é uma forma de organização civil difundida e reconhecida legalmente na Bolívia, sendo apropriada tanto pela direita como pela esquerda.

[2] A conjuntura internacional que favoreceria uma nacionalização plena na Bolívia seria a presença de governos muito mais a esquerda no Brasil e na Argentina, com movimentos sociais solidários em ambos os países pressionando esses governos. Uma articulação maior entre Venezuela, Brasil e Argentina é capaz de fazer frente as pressões das nações imperiais do norte global.

textos:

la nacionalizacion arrodillada

http://www.lahaine.org/index.php?blog=3&p=21574

los errores de evo

http://www.lahaine.org/index.php?blog=3&p=21853

La Central Obrera Boliviana formará un instrumento político de los trabajadores

http://www.aporrea.org/trabajadores/n92796.html

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One Response to Bolívia: Os erros de Evo e um novo instrumento político de esquerda

  1. gus says:

    Sua análise não estaria focada demais na questão de vontade política de um governante, ou mais, uma necessidade de uma “direção revolucionária”, com a qual a COB/COD compartilham?
    Porque o Evo não conseguiu romper com as transnacionais? Talvez não seja esse o limite institucional/jurídico que um governante chegue e que só uma rebelião possa impulsionar mais e mais avanços?
    Outro fato a ser citado é como esta sendo distribuida essa renda do gas nacionalizado dentro dos departamentos.

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