A desocupação violenta da Casa da Juventude Ungdomshuset, em março, foi
marcada por uma articulação incomum das polícias européias. Terá sido um
ensaio sobre como conter os movimentos sociais e o altermundialismo no
continente?
René Vásquez Díaz
De manhã bem cedo, no dia 1º de março, com uma imponente precisão militar,
uma grande demonstração de forças da lei bloqueia o setor da Casa da
Juventude (a Ungdomshuset) num bairro popular de Copenhague. O alvo é um
prédio de quatro andares – lugar da contracultura européia cedido pela
cidade em 1982, mas revendido pela nova prefeitura a uma seita cristã, sem
o consentimento de seus ocupantes. Em algumas horas, o local foi ocupado
como se um grupo de terroristas estivesse lá — e não 40 jovens sem armas,
cuja faixa etária média não passava dos vinte anos.
A evacuação começa. A polícia utiliza novos equipamentos. Possantes
canhões aspergem nas portas e janelas uma estranha goma, que endurece
instantaneamente e impede os ocupantes de abri-las. Simultaneamente, os
membros de elite da brigada anti-terrorrista, armados até os dentes,
chegam pelo teto, em um helicóptero. Ao que tudo indica — as autoridades
confirmarão depois — a operação foi minuciosamente preparada por longo
tempo.
Após o assalto e a evacuação de Ungdomshuset, passeatas de protesto, num
primeiro momento pacíficas, tomaram as ruas. A polícia cerca os
manifestantes, perde o sangue-frio, e rapidamente deflagra a violência.
Prisões em massa, às cegas, traumatizantes, se sucedem. Por todos os
lados, vemos jovens, para não dizer crianças, algemados nas calçadas:
cenas que lembravam situações de guerra, com helicópteros sobrevoando sem
parar a zona de operações.
Ao som de Manu Chao, a resistência dribla a repressão
Logo, os contestadores começam a contra-atacar. Ao grito de “a rua é
nossa!”, automóveis são virados e incendiados. Com a ajuda de contêineres,
latas de lixo e bicicletas, os jovens formam barricadas. Lançam, de
início, pedras do calçamento e garrafas. Depois, com a gasolina dos
veículos revirados, fazem coquetéis Molotov, que atiram contra as filas
compactas das forças da "lei". A cena, com os berros, as chamas, os
choques, a fumaça, fazia alusão à guerrilha urbana vista no Oriente Médio.
Cada vez que as investidas brutais da polícia chegavam a dispersar grande
parte dos manifestantes, pequenos grupos se juntavam em ruas adjacentes,
colocando fogo em latas de lixo e incendiando carros. As ações espontâneas
e descentralizadas, que surpreenderam continuamente os policiais, foram
coordenadas por mensagens enviadas via telefones celulares. Em matéria de
ação psicológica, os jovens deram, igualmente, provas de imaginação.
Fizeram-se ouvir, com muito sucesso, no meio da violência do conflito:
usaram um caminhão equipado com enormes auto-falantes, canções de Manu
Chao e outros artistas altermundialistas.
Enquanto isso, oito fileiras de policiais e veículos anti-motins vão
bloquear o acesso à Ungdomshuset. Sem motivos legais precisos, a polícia
procura os estrangeiros implicados na desordem. A batida policial dura
seis dias e seis noites, todo o tempo das hostilidades. Elas acontecem,
por exemplo, na Casa da Solidariedade (Solidaritetshuset) e em numerosas
residências particulares em diversos bairros de Copenhague. É assim que
mais de 140 estrangeiros são presos, não acusados de um delito ou de um
crime qualquer, mas com base em uma “presunção de periculosidade” e a fim
de evitar que participem de ações futuras [1].
Brutalidade policial e clara presença de reforços estrangeiros
Ao lado do uso excessivo da força, os estratagemas da polícia
surpreenderam pela sua ilegalidade: uma multidão de menores, daqui em
diante fichados, foram interrogados, mas seu número exato não foi
divulgado. Controle das fronteiras. Grande número de corpos policiais e
veículos anti-motim mobilizados. Gás lacrimogêneo, Brutalidade dos ataques
contra os manifestantes, com equipamento especial, Prisões maciças e
arbitrárias. Tudo isso fez uma imagem da polícia militarizada que -– como
na Itália, em julho de 2001, contra o Fórum Social de Gênova -– mostrou
uma tendência preocupante de agir fora do âmbito democrático.
Para esta batalha de Copenhagem, foram chamados reforços de outros países.
Por exemplo, cerca de 20 veículos policiais suecos, chegaram de Malmö, do
outro lado de Oresund. Cinco altos responsáveis das forças de ordem suecas
foram deslocados para observar os métodos repressivos de seus colegas
dinamarqueses. Testemunhas revelam que agentes civis, equipados com fones
de ouvido característicos, iam e vinham no meio do conflito,
comunicando-se em outras línguas (alemão, francês e inglês).
Em resposta à pergunta de um jornal, o porta-voz da polícia de Copenhague
negou categoricamente a presença de unidades ativas vindas de outros
países. Entretanto, reconheceu que “se houve”, eram “na qualidade de
observadores”. Outros analistas puderam constatar que as forças de lei
dinamarquesas utilizaram uma tática policial francesa colocada em prática
em 2006, nas grandes manifestações parisienses contra o projeto de Lei do
Primeiro Emprego [2].
Os jovens militantes coordenaram suas ações por meio de uma rede
sofisticada de sites da Internet, por meio dos quais pode-se acompanhar a
evolução dos confrontos hora após hora, com informações detalhadas dos
movimentos da polícia. Uma das novas prioridades das forças de lei será
piratear essas comunicações.
Metonímia: destruir o lugar para enterrar a luta
Em 5 de março, no meio de um bloco policial de ferro, a Casa da Juventude
foi finalmente demolida por operários munidos de máscaras e que utilizavam
buldôzeres e escavadoras. O nome da companhia proprietária foi
dissimulado. Com a destruição da Ungdomshuset, uma parte essencial da
história do movimento operário dinamarquês desaparece. A mídia não
explicou suficientemente as razões do ódio que esse lugar inspirou em
certos círculos. A vontade de colocar fim a um conflito que opôs jovens às
instituições durante de 24 anos não constitui o único motivo da
intervenção.
Desde sua construção, em 1897, este edifício foi a sede da Casa do Povo
(Folket Hus), importante local de agitação política do mundo operário
pobre de Norrebro. Personalidades como Lenin e Rosa Luxemburgo passaram
por lá. Em 26 de agosto de 1910, uma conferência internacional de mulheres
socialistas tilintou no local, na ocasião em que Clara Zetkin lançou a
idéia de criar um Dia Internacional da Mulher. A partir desta perspectiva
histórica, compreende-se a pressa quase desesperada das autoridades
dinamarquesas em destruir o imóvel.
Em 1982, após quase dois anos de conflito, a prefeitura de Copenhague
terminou por autorizar os jovens a utilizar a casa. No entanto, em 1999,
novos governantes decidiram seu fechamento. A classe política estimava que
as atividades não “eram satisfatórias” e que o imóvel estava em mau estado
por causa de um incêndio em 1996. Por seu lado, os jovens “anti-sistema”,
defendiam seu direito de expressão, com sua tradição de luta, e porque
dispunham de quatro andares e um subsolo alojando uma livraria, sala de
concertos, salas de ensaio, estúdio de gravação, imprensa, numerosas salas
de reunião e cozinha coletiva.
Com mais de quinhentos visitantes por semana, a Ungdomshuset constituía
uma forma radical de pensamento alternativo. Esse centro de atividades
culturais, sociais e políticas, repousado na tolerância, responsabilidade
e solidariedade, sem discriminação racial nem sexual, ostentava um
desprezo total pela sociedade de consumo. Os jovens, independentes, não
esperavam particularmente mudar a sociedade. Portanto, não representavam
um perigo para o Estado. Apenas exigiam que os deixassem desenvolver sua
cultura à sua maneira.
Em vez da comunidade tolerante e responsável, os fundamentalistas
Em 2000, o governo municipal de tendência social-democrata vendeu o imóvel
à seita Faderhuset (Casa do Pai). Esse grupo religioso fundamentalista,
cujo dirigente (Knut Evensen) escuta somente as indicações que chegam a
ele “diretamente de Deus”, sustenta a cruzada contra os muçulmanos da
Dinamarca. A venda constituiu um ato de guerra simbólico, tornando o
conflito insolúvel. Os jovens rejeitaram todas as propostas de mudança,
recusando a intervenção de educadores e assistentes que enquadrariam seu
tempo livre, assim como seu modo de pensar. O conflito foi então deslocado
para o terreno do direto à propriedade privada e a evacuação requerida
pela seita obteve cobertura legal.
Aos violentos protestos seguiram-se repetidas manifestações pacíficas. Em
8 de março, uma marcha de mulheres juntou mais de três mil pessoas. A
polícia efetuou controles de identidade generalizados. A Dinamarca jamais
havia conhecido esse tipo de estado de sítio policial. Mais de 750 pessoas
foram detidas — dentre elas, aproximadamente 140 estrangeiros.
A zona metropolitana de Copenhague reúne pouco mais de um milhão de
habitantes. A polícia não tem meios de abrigar, nem de interrogar tal
quantidade de detidos. Muitos dentre eles foram transportados para a ilha
de Fyn e Jylland. Um estabelecimento penitenciário de Copenhague teve que
ser parcialmente esvaziado para poder alojar os jovens detidos. De 10 a 19
de março, Norrebro e Christianshavn foram decretadas zonas nas quais todos
cidadãos estavam expostos a ser revistados e fichados, mesmo na ausência
de qualquer suspeita. A medida, única em tempos de paz, seria suficiente
para testemunhar a incapacidade das autoridades de controlar a situação.
No entanto, segundo a polícia, a operação “foi um sucesso”, pois graças ao
grande número de detenções, e apesar da violência dos conflitos,
contaram-se poucos feridos.
Que dose de violência pode suportar uma democracia?
Como se explica essa repressão desmesurada? Para o professor Lars Dencik,
da Universidade de Roskilde, a Dinamarca preparava-se para enfrentar
terroristas perigosos em seu território. Como nada do tipo acontece,
viu-se na evacuação da Casa da Juventude uma ocasião de ouro para testar
suas forças de elite. Mikael Rothstein, da Universidade de Copenhague,
estima que alguma coisa grave aconteceu. Conhecida como um dos países mais
tolerantes e livres da Europa, a Dinamarca tornou-se “retrógrada”, “de
espírito limitado”.
O atual governo, uma coalizão liberal-conservadora (dirigida pelo
primeiro-ministro Anders Fogh Rasmussen desde 2001 e sustentada pela
extrema direita xenófoba e ultranacionalista) entregou a essa ocasião uma
batalha política e sobretudo cultural contra todo tipo de oposição.
Pouco a pouco impõe-se um nivelamento das escolhas ideológicas. Mesmo em
matéria de literatura, as autoridades tendem a impor uma regra dogmática.
Hoje na Dinamarca, muito mais do que no resto da Europa, a rejeição a tudo
que pode ser diferente ou que pode sair de uma certa docilidade social se
transplanta sob a afirmação de um discurso “étnico dinamarquês” que se
opõe aos imigrantes. Em um clima de intolerância que se adensa, o Estado
considerou que era possível combater os valores da contracultura solidária
e anti-consumista da Ungdomshuset pela repressão.
A evacuação e a demolição rápida da Casa da Juventude pode ser entendida
como um acerto de contas com um grupo difícil de dominar. Mas a atitude
das autoridades dinamarquesas pode ser recebida como uma “experiência de
laboratório” em termos de repressão policial, própria de um sistema que
pressente que precisará cada vez mais da violência. Em Copenhague,
técnicas de tipo semi-militar foram colocadas em prática. As forças da lei
de outros países europeus dispõem agora de um precedente estudo in situ,
que poderá responder-lhes a essa questão: que dose de repressão pode
suportar uma democracia?
Tradução: Elisa Buzzo
elisabuzzo@gmail.com
[1] A Associação de Pais contra a Brutalidade Policial, que exerce um
papel importante como testemunha, denunciou esses atentados aos direitos
civis.
[2] Os agentes das unidades especiais estavam vestidos como os ativistas.
Misturaram-se a eles, lançando-se subitamente sobre aqueles que pareciam
ser os mentores, para imobilizá-los e detê-los a força.
FONTE: http://diplo.uol.com.br/imprima1549